O texto a seguir foi publicado originalmente no livreto “Os piratas são los padres: Histórias em los albores de la era digital” do coletivo catalão Exgae (http://exgae.net). Este livro está sob a Licença Poética 2008 que pode ser lida na íntegra em http://la-ex.net/los-oxcars/programa/pirataslospadres
Basicamente, ela quer dizer: Multiplica e reparte.
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Jonh Jordan
Bóveda Global de Sementes de Svalbard
Nr. Longyearbyen
Ilha de Sptisbergen
Arquipélago Ártico de Svalbard
Noruega
30 de agosto de 2020
Querido Jack:
Te escrevo do interior de uma mina de carvão abandonada, no Banco Global de Sementes construído no início do século para proteger as plantas do colapso ecológico. Lá fora faz calor e umidade, o permafrost se derrete rapidamente. Lamento não haver escrito pra você ultimamente, mas a viagem até aqui foi muito longa. Tínhamos o vento contra nós.
Em sua última carta você me perguntava por que quando era pequeno eu limitava o tempo que você passava no youtube, second life, facebook e outros mundos virtuais onde tanto gostava de jogar e compartilhar.
Bem, depois da rebelião global de P2P em 2010, pensávamos que estávamos ganhando. A comunidade voltava a expandir-se, já não colocariam mais barreiras ao nosso conhecimento, privatizariam nossos sonhos nem iam estreitar nossos desejos. A cultura livre se estendeu por todas as partes, nosso mundo por fim estava interconectado em uma rede de histórias ressonante, nosso imaginário coletivo já não tinha fronteiras. O conhecimento era livre em todas as partes.
Mas então a história teve uma reviravolta inesperada. A economia, os sistemas energéticos, o clima – tudo ficou à deriva. A máquina suicida – o capitalismo – se desmoronou. Com ele, desapareceram nossos sistemas de subsistência e nos enfrentamos subitamente com nossa ignorância.
Nos demos conta de que havíamos passado tempo demais compartilhando histórias em telas e nos havíamos esquecido da mais importante. Da que nos lembra que somos corpos, com desejos e necessidades que vão além da imaginação. Tínhamos cultura, mas havíamos esquecido da atividade que está na raiz etimológica da palavra “cultura”: nos havíamos esquecido de como “cultivar”, de como lavrar a terra, de como conseguir nosso próprio alimento. Assim que passamos fome, muita fome.
Estávamos acostumados a lidar com panes do sistema, mas não com uma assim. Entendíamos as redes quando eram eletrônicas, mas não as redes vivas complexas dos bosques, solos, mares e rios que nos proporcionavam alimento, roupa e teto. Valorizávamos a horizontalidade, mas havíamos ignorado convenientemente o fato de que ainda nos colocávamos a frente de qualquer outro ser vivo. Havíamos separado o compartilhamento de histórias do compartilhamento de sementes, o fazer cultura de cultivar a terra e nos havíamos desconectado totalmente da vida.
Por isso Jack, é porque eu te pedia para desligar o computador….
Sempre te amarei,
Papai XX
John Jordan combina a imaginação da arte com o compromisso radical do ativismo. Trabalha nos movimentos anticapitalistas e ecologistas, desde Reclaim the streets até The Clandestine Insurgent Rebel Clown Army e o Climate Camp. http://www.labofii.net/
P.S da tradutora: O Banco de Sementes da Noruega foi apresentado como um guardião das sementes tradicionais quando na verdade tem patrocínio e parceiros ligados ao agrobussiness e à propriedade intelectual, chegando mesmo a ter ligações com Bill Gates, como se vê em http://www.scidev.net/en/news/gates-foundation-joins-global-crop-research-network-1.html
Visões do futuro
NATURE
4 de maio 2056, Vol 471, numero 9696, p42
Seção Direito e Saúde, com Harvey Brillant, Doutor em Direito
Meu marido e eu queremos ter filhos mas nos deparamos com um problema. Nos consultamos com três eugenistas e todos nos dizem que qualquer combinação de nossos genes que possa resultar em um bebê saudável está patenteada e não temos bastante dinheiro para pagar as patentes. Isso está correto? Anexo nossos perfis genéticos, declarações de bens, folhas de pagamento e os impostos de renda dos últimos cinco anos.
(Mãe e Martir em Madrid)
Felizmente, não está totalmente correto. Algumas dessas patentes se podem evitar com um aleatorizador de íntrons. As clínicas de saúde não costumam dar essa informação, porque o sequenciamento aleatório de genes está sujeito às tarifas fixadas pelo tratado de OMPI de 2027, e lhes deixa poucos benefícios. Mais complexo e mais caro é o uso de diferentes códons para expressar as proteínas descobertas pelas patentes (as patentes são de procedimento, assim que não cobrem as proteínas em si).
Porém, isto os deixa de todo modo sujeitos ao bloque de patentes de Genintech sobre o sistema imunológico, cuja estratégia à prova de bombas foi desenhada pela famosa equipe da divisão de genética da IBM. Ainda que a terapia modifique domínios não conservados das proteínas em questão, as patentes seguem sendo válidas; estão perfeitamente blindadas. Assim que está certa, você e seu marido não podem permitir um bebê saudável. Vocês terão que gerar um bebê com um enfermidade menor e buscar uma cura que entre no seu orçamento.
Minha recomendação é que tenham um bebê celíaco. O transtorno celíaco é tratável com um retrovírus desde o ano 2042 e há uma solução com licença livre (sobre a General Genetic License da Free Software Foudantion), desde 2042. As patentes seguem ativas, mas se podem adquirir a preços muito acessíveis, já que foram adquiridas pela Open Genetics Consortium quando da quebra da Pfizer-Monsanto em 2056. Se você e seu marido não têm predisposição genética ao transtorno celíaco, vão precisar comprar os genes de um doador.
O melhor lugar pra fazer isso é Jinling, na China. É o único país que implantou a exceção do copyright genético ao tratado de 2027, enquanto que no resto dos países o doador conserva direitos sobre as obras derivadas de seus próprios genes e, consequentemente, teriam direitos sobre seus netos. Além disso, depois do colapso demográfico, o Yuan está muito baixo, assim que hipotecando a casa podem lhes permitir umas férias ao mesmo tempo que têm um bebê saudável (com um 97,5% de probabilidade). Felicitações.
Tradução: Tadzia Maya